Parte I
Abro os braços e deixo a energia ser absorvida pelo meu corpo através de minha pele. A pele responde. Sinto arrepios subir pelo corpo. Um sentimento de leveza e bem-estar me invade. Estou ao lado, no precipício chamado “Garganta do Diabo” – uma das principais partes da anatomia do corpo das Cataratas do Iguaçu. Não penso nada. Sinto. Aprendo sentindo.
As Cataratas conversam comigo. Meus olhos se abrem e eu vejo coisas. Vejo, pela primeira vez que as Cataratas são realmente femininas. Não é só um acidente de gênero de substantivos. Ela, as Cataratas, é feminina. Não pelo mesmo motivo que mesa, cadeira ou tábua sejam, femininas. Coisas assexuadas classificadas como femininas por convenção.
Quando digo que as Cataratas são femininas me refiro ao princípio feminino. Em um minúsculo óvulo, no universo ou no multiverso, tudo é regido por dois princípios: o feminino e o masculino. O yin e o yang do Tao. Revelando-se a mim como feminina, as Cataratas me deixam ver e sentir sua feminilidade – ligada à reprodução, à manutenção da vida, ao aleitamento, à amamentação. Vejo seu sexo. Sinto seu gozo. Exploro sua púbis. Acaricio seus verdes pelos pubianos. Ela gosta e se revela mais.
Na cavidade sexual da Mãe Cataratas, desemboca o rio Iguaçu – este que se me dá a entender como masculino. No encontro do rio com a "Garganta", acontece a fecundação. Brota vida. Nasce a respiração que sinto na pele. O gozo sobe em forma de vapor branco. Lança-se ao espaço. E é perene esse gozo. É constante. É uma felicidade eterna. Para aqueles que são permitidos entrar nesse gozo, um pouquinho dele sobra em forma de orvalho. O resto se cristaliza em esplêndidos arco-íris.
Da sagrada e pulsante Yoni das Cataratas, vejo a mata verde que lhe protege a cavidade. De dentro da Yoni, de onde sai o gozo da vida, assisto o voar de centenas de pássaros – são os taperuçus de cascata – que dançam no gozo vaporoso; elevam-se aos céus, até onde o vapor chega e de lá, despencam, de cabeça, como se fossem setas a apontar para a origem da grande sensação. Os incautos dizem que os taperuçús têm vôos suicidas. Enganam-se. Não é um vôo suicida. É mergulho na vida – na própria vida. É um eterno criar, a dança da vida que é o encontro da Yoni/Cataratas com o Lingham/Iguaçu. Da Yoni / Cataratas com o Universo. A sublime união.
Os taperuçus, as mais felizes da criaturas, nascem, brincam, caçam insetos no ar, vivem plenamente e morrem na cavidade sexual do princípio feminino do Iguaçu. Seus ninhos estão em pequenos buracos nas paredes rochosas – os poros – no lado interno das coxas da grande mãe. Uma gramínea verde resistente cobre as superfícies. Nelas se agarram os taperuçus. Ao voar entre diferentes grupos de gramíneas, os taperuçus transportam suas sementes. É a continuação do grande ato sexual. Na água, em baixo, os dourados vêm desovar e de lá saem os novos douradinhos, resultado da grande atividade sexual que prossegue para sempre.
Enquanto me extasio, percebo que ao meu lado, chegam alguns corpos. Um grupo de corpos. Pela língua falada, entendo que são corpos argentinos, corpos brasileiros, corpos alemães. Eles chegam, olham, apontam máquinas fotográficas, recolhem imagens programadas e saem em bando. Tenho pena deles.
As Cataratas emudecem. Lançam sua poção do engano. Anestesia-lhes a visão. Não viram nada. A maioria pode riscar aquela curiosidade de suas listas turísticas. Vieram, viram e saíram vazios. Fizeram um verdadeiro “tour”, no sentido de círculo. Saíram sem entender sequer a topografia física do atrativo turístico. Quantos rios formam as Cataratas? Os guias insistem que o rio é o Iguaçu. Que desemboca no Paraná – com seus esgotos, pesticidas potamicidas*. Mas o encontro, o encontro ao qual deveriam ter vindo, não aconteceu. O encontro entre os filhos da Terra e a Mãe.
Parte II
As Cataratas e o rio são a mesma coisa e ao mesmo tempo não o são. É e não é. São a mesma coisa somente quando vista pelos olhos do engano – os olhos de Maya. As Cataratas estão no rio mas não são o rio. O rio desemboca em sua sagrada fenda e nela se transforma. Ao ver o rio, daqui, não é o rio que se vê. Se vê águas. O rio, masculino, abre mão de sua personalidade. Extingue-se. Apaga-se. Entrega-se. Esquece-se. Neste mergulho o rio não reclama sua soberania. É a fusão do masculino no feminino. É a vitória do princípio feminino, esse da criação. Esse, presente nos ovos. Nos úteros. Nos ninhos. Nos ventres. Nas nuvens cósmicas que parem as estrelas. Em algum momento, esse encontro místico, sexual organômico extingue as personalidades das Cataratas e do rio. Afinal quem deu-lhes, às Cataratas, esse nome? Eu que momentaneamente me livrei de Maya – a Deusa da Ilusão – olho para o movimento das águas lá embaixo, vejo mil e uma formas, texturas, cores e vidas. Mas tudo o que vejo não tem nome.
Cabeza de Vaca liderou os imbecis que – em sua pressa européia, enxergaram ali “Saltos”. Como se a água saltasse e não escorrega-se maliciosa, dengosa, tarada. Outros homens seguiram-no – cegos por Maya – e ali enxergaram Cataratas. Se criam sábios. Mais visão tinham os guaranis. Ao olhar para aquela exuberância de águas; para tanta água que não conseguiam beber e que se fossem beber daria para satisfazer a sede de uma quantidade tão grande de guaranis, que eles concluíram que viam uma coisa sem nome. Para bebê-la, deveria haver tantos guaranis que se derramassem pela terra. Por isso a chamavam somente de Y Guazu – Água Grande.
Hoje os descendentes de Cabeza de Vaca não se dão por satisfeitos. Além de dá-lhes nome, ainda a medem em litros. Em metros cúbicos. Há quem a pese por segundo, por minuto. Mas, aqui livre do feitiço de Maya. Eu entendi. Abracei-me a Água Grande e perguntei-lhe: mãe, como queres que te chame? Por qual nome te conheces? Fechei os olhos e ouvi seu nome por todos os 600 mil sensores de minha pele; por todos os ossos de meu esqueleto; através de cada fio de cabelo e pelo de meu corpo. Foi um tremor sonoro. Foi um ruído vibratório. Foi um som escutado por todos os meus órgãos, com a exceção de meus ouvidos. Tentei transcrever o seu nome em um papel. O papel era pequeno. Meu cérebro não se lembrava de todas as partes. Não havia símbolos para os sons para os quais grafar. Era o som de todos os vulcões, de todos os mares, de todas as pororocas. Mil livros não teriam espaço. Quem quiser saber seu nome deve se livrar de Maya, perguntar-lhe a Água Grande e ouvir a reposta.
Sinto-me apenado dos corpos. Tenho-lhes compaixão. Depois de Cabeza de Vaca, o líder dos imbecis, vieram muitos. Ultimamente vem aqueles que se conformam em ser chamados de turistas. São os corpos que vejo ao meu lado. O guia dispara sua metralhadora verbal e conta-lhes mentiras aprendidas de cor. Os litros de água. A descoberta. É maior do mundo. É protegida pelos governos. É um patrimônio da humanidade. É mais visitada. Nada dizem sobre o gozo. Sobre o princípio da criação. A relação sexual com o universo e com os visitantes livres de Maya. Nada diz-lhes sobre a negação do rio. O idioma da Natureza que não utiliza alfabetos – pois tem milhares de vogais. É uma língua vocálica onde só entram consoantes nas horas traumáticas da criação. É o som do “AUM” do “Alfa ” e do “Omega”.
Notas
* Potamicídio = assassinato de rios. "Potamos" em grego significa rio. Cida ou cídio, dá idéia de assassinato. Homicídio, Infantocídio, “potamocídio”. Com esta palavra me refiro ao assassinato de rios cometidos pela civilização.
Este texo é antigo. Coloco-o aqui porque ele é real. Muito real! A inspiração dele é tântrica, muito tântrica!
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