segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Para refletir: A ausência da palavra Cataratas na Bíblia (I)

Com mais de 40 milhões de litros por segundo

"E o rio masculino se rende à fenda, onde nela desaparece ..." do livro
A Y-Guaçu Secreta, as Cataratas do Iguaçu como um Chákra da Terra  (2005)



Um dos maiores missionários protestantes do século passado, William Cameron Townsend, fundador da Wycliffe Bible Translators, contou que quando morava entre os índios Cakchiquel (maia) da Guatemala, um Cakchiquel viu uma Bíblia em espanhol em cima da mesa dele e perguntou: o que é isso?  Ele respondeu dizendo que era uma Bíblia. “A palavra de Deus, o criador de toda a humanidade”.

Após ouvir a explicação, o índio continuou tocando a bíblia como se estivesse a avaliando sem saber exatamente o que ela dizia em sua maneira de expressar com tantas letras. Daí disparou, sem rodeios: “Se o seu Deus é tão esperto, por que ele não fala a minha língua? 


A frase dita pelo Cakchiquel foi recebida por Cameron como uma mensagem de Deus. Ele tem razão, pensou. Empurrado por esta frase marcante, o missionário dedicou toda a vida a seu maior projeto: a tradução da Bíblia ou parte dela em todos os idiomas do mundo.  



A pergunta do Cakchiquel, descendente dos maias, parece com uma pergunta que já me fiz uma vez, há muito tempo, e  continuo fazendo: Por que a Bíblia não menciona, sequer uma vez, a palavra Cataratas ou Cachoeiras?  Se a Bíblia não registra a palavra Cataratas, pelo menos uma vez, devo entender que os cristãos não devem dar valor às milhares de cachoeiras e cataratas, grandes ou pequenas, majestosas ou minúsculas do Mundo? Devo entender que a Bíblia não dá valor a cachoeiras e cataratas. 
Milhões de pessoas vem às Cataratas anualmente

Esta baixa estima oficial cristã por Cataratas e cachoeiras é grande. Parecem tê-las colocado na lista das coisas a serem dominadas, conquistadas,  domesticadas ou destruídas ao longo da história por desbravadores, conquistadores e exploradores.


Cataratas e Cachoeiras, de todos os tamanhos têm sido importantes ao longo de milhares de anos como Lugares Sagrados para todas as tribos das Américas que têm ou tiveram cataratas ou cachoeiras em seus territórios. Um valor intrínseco que se abre como um leque em várias dimensões e profundidades diferentes. Algumas, muito grandes podem ter exigido respeito e inspirado temor. Mas todas receberam desses povos amor, oferendas, orações, canções e outros presentes. 



No Brasil, lugar onde, como diz o ditado, Deus escreveu reta e sabiamente, usando linhas tortas, conseguimos transformar o passado doloroso da escravidão, da servidão em um casamento – uma espécie de miscigenação cultural, espiritual entre as visões dos negros que vieram da África, dos povos que já viviam aqui e com os filhos misturados de portugueses fazendo com que a visão animística africana e a visão xamânica da Terra se encontrassem e dessem fruto. Que os mesmos rios, os mesmos lagos, as mesmas cachoeiras, matas, selvas, montanhas, cavernas e grutas tivessem importância para esta nova sociedade – a única coisa realmente nova, fruto deste encontro. A umbanda é um exemplo desse belo resultado que na sua linha litúrgica abriu e continua abrindo espaços para que além dos elementos tipicamente africanos se junte também as energias e vibrações de ciganos, mestres orientais, de caboclos, gente da lida da terra e pessoas de todas as classes sociais – todas ligadas por um amor à terra, ao que chamamos de natureza.          

No Salmo 42

Na primeira parte desta publicação, destacamos o encontro de Cameron com o índio guatemalteco e a tese de que se Deus não fala a sua língua ele, possivelmente, não se importa com você, sua etnia ou seu povo. Continuou lembrando que na “leitura da paisagem”, na interpretação da paisagem natural, criada por Deus, o nativo estranha quando lugares especiais de sua paisagem não apareçam nas páginas desse livro. Alguém pode rebater afirmando que a Bíblia Sagrada fala de Cataratas ou Catadupas no Salmo 42. Lá, no versículo 7, diz, de acordo com a versão Almeida Corrigida e Revisada: 

 “Um abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e as tuas vagas têm passado sobre mim”. 



Mas aí, parafraseando e aprendendo com o pensamento islâmico, pode-se argumentar que a Bíblia que possuímos em mãos e em português é fruto de um prodigioso esforço de tradução de modo que o que temos em mãos é uma tradução da Bíblia visto que a parte da Bíblia onde se encontram os salmos foi escrita em hebraico. Por isso é necessário identificar fontes, mencionar, dizer que a citação se encontra deste modo nesta ou naquela versão.  Comparemos aqui ligeiras diferenças entre algumas versões ao traduzir o mesmo verso do Salmo. A Nova Versão Internacional (NVI)  traduz:


“Abismo chama abismo ao rugir das tuas cachoeiras; todas as tuas ondas e vagalhões se abateram sobre mim”


A versão Católica Bíblia Ave Maria não usa a palavra cachoeiras, cataratas ou catadupas. Prefere, em vez disso, falar de  “águas revoltas”.
 

“Uma vaga traz outra no fragor das águas revoltas, todos os vagalhões de vossas torrentes passaram sobre mim”.

Além de “waterfalls” – ou quedas d’água, há versões da Bíblia em em inglês que usam “cataracts” e muitas versões preferem a palavra “waterspouts”. O problema é que “waterspout” não é a mesma coisa que "waterfalls" ou cataratas. O versículo é traduzido assim na versão Rei Jaime (King James Version) em inglês:


"Deep calleth unto deep at the noise of thy waterspouts: all thy waves and thy billows are gone over me".


Nesta época de verificação instantânea de qualquer informação por meio de uma ferramenta impensável há 50 anos chamada Google, não leva cinco minutos para verificar que “waterspout”  tem mais a ver com "tornados" do que com cataratas ou cachoeiras. O pesquisador ou buscador pode escolher a opção “imagem” ou “vídeo” para ver fotos e filmagens de “waterspouts” em ação em todo o mundo.

Um "waterspout" em ação 

Em hebraico, a língua em que foi escrito o Antigo Testamento, a palavra que foi traduzida como Cataratas, Cachoeiras, Catadupas é “tsinnor” (צִנוֹר) e tsinnor, tem a ver com o tornado e especialmente com o tornado no mar. Como e por que a palavra "tsinnor" mais ligada a "tornado marítimo”, “tromba-d'água”, “tromba marinha”, foi traduzido como Cataratas é alvo de uma civilizada discussão cujos méritos e profundezas não são parte do objetivo deste artigo. Aceitando que “tsinnor” é um fenômeno poderoso da natureza o que para povos ligados a esta natureza e na visão deste trabalho, tal fenômeno é visto como uma demonstração poderosa do poder da criação e não diminui o valor da mensagem que o salmista quis passar com ela. Trazendo o Google mais uma vez à discussão, um outro exercício para quem quiser confirmar o que se propões aqui, basta copiar a palavra “tsinnor” em hebraico  (צִנוֹר) e colá-la no site de busca. Toda a pesquisa aparecerá em hebraico e pode não ter utilidade para o leitor no momento. Mas se o gesto de escolher a opção “imagem” ou “vídeo”, a tela se encherá de fotos onde aparecem objetos em forma de tromba, como mangueiras e tubos, condutos e até a tromba de elefante que tem o formato arredondado ou tubular. No hebraico moderno, este vórtice  com formato de coluna tubular que acontece ao longo de lagos, mar e rios é chamado de “ned maim” (נד מים) com o mesmo sentido de tromba d’água.  
Um "waterspout"
נד מים
Chegamos a este ponto neste capítulo concluindo que a palavra Cataratas não aparece na Bíblia. A palavra traduzida para o português como Cataratas ou Waterfalls na versão inglesa não é “cataratas”. Refere-se a outro fenômeno natural  como uma carga animística muito grande que pelo seu formato recebeu o nome de “tromba” de água e é da família das manifestações dos grandes ventos, dos tornados. Concluímos também que esse pequeno e inexplicável problema de escolha de “imagem” (palavra) para traduzir um sentimento de pequenez do humano (homem / mulher) expressado pelo salmista não desmerece em nada sua beleza e importância.

Repitamos o texto da primeira tradução:
 

“Um abismo chama outro abismo, 
ao ruído das tuas catadupas; 
todas as tuas ondas e as tuas vagas
 têm passado sobre mim”.
 

É como se a profundeza do mar atraísse a profundeza insondável do céu com suas nuvens carregadas e encaminhasse as duas profundezas para um encontro com o ruído – ruído ensurdecedor e atemorizante de seus tornados de água. Imaginar-se em um barco, no exato ponto desse encontro permitirá entender o sentimento de quem diz: "todas as tuas ondas" – as ondas do mar agitado – e "todas as tuas vagas", as ondas menores e que se encontram de todas as direções – passaram sobre mim.

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